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APARAS DE ESCRITA: UM DIA COMEMORATIVO

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sábado, outubro 19, 2002

UM DIA COMEMORATIVO

Dentre todas as espécies conhecidas, somos a única comemorativa ou, pelo menos, aquela que, com alarde ou modéstia, manifesta as suas comemorações.
Para além disso, tudo nos serve de motivo de comemoração, envolvido no mesmo prazer, nos mesmos abraços, nas mesmas lágrimas, no mesmo crepitar de copos e garrafas.
É assim que comemoramos vitórias e derrotas, sucessos e fracassos, fortunas e misérias, nascimentos e genocídios, casamentos e funerais, autodeterminações e prisões, alegrias e desgostos. De forma paradigmática, com uma tremenda bebedeira comemoramos a bebedeira de ontem.
O nosso catálogo é vastíssimo e podemos dar-nos ao luxo de não participar nas comemorações dos séculos dos descobrimentos, das variadas ementas das capitais da cultura, do nascimento de Beethoven ou da inauguração da linha férrea de Lisboa ao Carregado, pois temos ainda de sobra para comemorar.
Quando, por exemplo, nos distribuem a agenda de secretária no princípio do ano e nos atiramos a ela como gato a bofe à procura dos feriados, é todo um manancial de espectáculo comemorativo que nos oferece , quotidianamente, o tesouro histórico da Santa Sé: em 15 de Março, nunca mais me esqueci, festeja-se Santa Conegundes (ignoro porquê mas respeito que se pretenda premiar a coragem de transportar tal nome por uma vida inteira); nos restantes dias há de tudo: confessores (um bom pretexto para os psicanalistas se candidatarem), apóstolos (os doze multiplicaram-se de uma forma para a qual a ciência não tem explicação), bispos e patriarcas (às toneladas), donzelas (embora bastante menos), ascetas, anacoretas e contemplativos (é muito mais espiritual, para a nossa sensibilidade, ouvir mugir o boi do que puxar ao arado), descalços (o que me parece desleal em relação aos calçados, uma vez que, feitas as contas, um par de chanatos deveria custar mais que três dias de trabalho de um camelo), mendicantes (uma esperança para os de hoje conseguirem um lugarzinho na agenda daqui a século e meio), cartuxos (sem consideração, desculpável porque extemporânea, pelos outros tipos de embrulho, em particular os cartuchos e os sacos de plástico), enfim, toda uma corte pluridisciplinar em que não falta o anjo da guarda (nacional republicana incluído). Não ficaria admirado se, vasculhando a fundo, viesse a encontrar uma qualquer Broncolina, virgem e mártir (pudera...) de estatuto ganho na busca infrutífera do sexo dos anjos.
Mas se nos entediarmos pela referência exclusiva a eleitos do credo, podemos saltar para outro tipo de inventário, de leque de opções não menos atractivo: dia do pai (avô também, por inerência da função, se bem que, por vezes, só tenha disso uma vaga ideia), dia da mãe (avó é mãe, embora digam que há só uma), dia da criança (o mais abrangente), dia do fumador (e vice-versa), dia de S. Martinho (o génio da garrafa), dia do coração (peditório), dia da sida (mudar de camisa), dia da saúde (não tomar pastilhas, seja qual for o laboratório), dia da paz (contar espingardas), dia da família (finalmente, estamos todos juntos a ver a telenovela), dia do trabalhador, dia de descanso, dia de trabalho, dia sim dia não, dia após dia, dia de cão, dia da árvore, dia D, dia mundial, nacional, do semanário, da semanada, de pagamento...
Não quero ser maçador e fico-me por aqui. Permitam-me, contudo, que aponte um lapso no rol das festividades - falta o dia da sogra.
Não faz sentido esta ausência, pese embora a nossa atenuante de a mimar no dia da mãe, dele ou dela.
Se, como em tudo, há sogras e sogras, é sempre figura presente, mesmo quando lhe chamamos de santa, com aquela entoação que pretende irritá-la. Cada um vê-la-á a seu modo e, até por isso, merece, em minha opinião, um lugar destacado entre os comemorados.
Quando eu andava na escola, todos os dias eram dias da sogra, no fim da tarde. O anafado e vermelhaço pregoeiro descia pontualmente as escadinhas do bairro com um troante "líiiiinguas da sogra!", arremessado pelo longo funil que lhe servia de amplificador de voz, da mesma cor verde da enorme vasilha que pendurava nos ombros. A garotada, moedinha na mão, tostão para lá, língua da sogra para cá, babava-se com o barquilho estaladiço e acabava a chupar os cotovelos.
Perdeu-se aquela língua da sogra. Fui encontrá-la, mais tarde, diferente, sem beleza, quando, ao serão, a atamancar trabalhos atrasados do liceu, ouvia a família falar da língua viperina desta ou daquela sogra.
Depois, adolescente, a imagem da sogra era a do balde de água fria, atirado sem dó nem piedade às virilhas, quando as fogueiras de S. João levavam o fogo à estopa.
Mais tarde, a sogra, a sogra era a sogra, às vezes confidente, outras, por livre iniciativa, conselheira da minha mulher, de tal maneira que eu não sabia se me deitava com a filha ou com a mãe.
Apesar disso, e também por isso, a minha mulher, passados tantos anos, mantém-se ao meu lado, serena, alicerce e... quase sogra. Sorri, brejeira nos seus pensamentos de menina, e insinua imitar, sem convicção, os baldes de água fria no quase genro (que adora) - um matulão de gangas deslavadas que, nos intervalos (intermináveis) da defesa de duas causas em tribunal, namora, ou devora, já não sei, a pequena. Para fingir ignorar os beijos que se soltam nas nossas costas como pássaros a aprender o voo, entrelaça-me os dedos, de mansinho, cheios de recordações. Quando os ataques deles ultrapassam o fecho da emissão, lembra-me, discretamente, que são horas de dormir. Acorda-me de manhã com um sumo de laranja e um dedo nos lábios para que eu não faça perguntas. Enrosco-me outra vez e fico a ouvir o tilintar distante dos risos do pequeno-almoço na cozinha. Volta para a cama e aquece-me o resto da manhã com sonhos de pernas enleadas.
Entre dois sonhos, decido escrever à Assembleia a propor a inclusão do Dia da Sogra no calendário festivo, o dia das ditosas mães que tais filhas destes.
Mas, quando acordo, definitivamente, esvai-se-me o projecto, alertado pelo risco de vulgarizar a imagem terna da minha Companheira; porque, afinal, de vulgaridades e hipocrisia está o calendário cheio.

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