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APARAS DE ESCRITA: CAIXOTE DE LIXO

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sexta-feira, janeiro 25, 2002

CAIXOTE DE LIXO



Nasci perto do fim dos anos 40.
Até onde as minhas memórias mais arcaicas me deixam chegar, o Outono na cidade era pintado de cinzento triste e os garotos como eu brincavam com barquinhos improvisados nas poças deixadas pelas primeiras chuvas.
No Natal enfeitava-se um pinheiro com pequenas velas de estearina colorida, encaixadas em castiçais de folha prateada.
Em Abril águas mil e, em Maio, as trovoadas afugentavam-me para o canto mais escondido da casa a rezar a Santa Bárbara. O rádio de válvulas gaguejava e tremia como eu quando um relâmpago mais vivo e um trovão mais medonho anunciavam que o mundo ia acabar.
De Junho a Agosto derretia como manteiga ao lume. Pelas janelas abertas ao serão entrava o cheiro a manjerico e a vasos regados de fresco, à mistura com a da lenha queimada nas fogueiras dos santos populares. Dessedentava-me das correrias no pequeno alguidar de alumínio, de lavar as mãos, as bochechas em brasa, mergulhando a boca na água vertida da torneira do contador enorme e negro que marcava os metros cúbicos com badaladas de relógio. Sentia o gozo do animal que, no fim do dia, vai ao lago. Sem afazeres, sem preocupação que não fosse a barriguinha cheia, fruía sestas na varanda de pedra, coberta por um toldo caseiro, feito dum lençol assente ao meio no pau da roupa. À distância, no largo, os eléctricos pachorrentos guinchavam na curva que os levava pela Rua da Palma acima. Era o único som que me prendia à vida e, apesar do sono, dizia-me que o mundo, afinal, não acabara.
De manhã cedo flutuava um cheiro acre mas desempoeirado. As carroças puxadas por cavalos e burros paravam à porta das tabernas dos galegos, com carvoaria ao lado, e recolhiam os restos da véspera em latas e bidões - caldo onde havia de tudo e dava o gosto, hoje perdido, do gado dos arredores.
Nesse tempo, os carteiros subiam e desciam escadas sem elevador porque as caixas de correio estavam ainda na forja. Atrás dos carteiros, os marçanos, de bata cinzenta, carregavam ao ombro canastras apinhadas de mercearia embrulhada em pacotes de papel grosso. Duns e doutros, até um cego sabia que tinham pés...
Nos prédios desconhecia-se o luxo das condutas de lixo. Os sacos de plástico não tinham feito a sua aparição colonizadora. Valia o papel pardo, o papel da manteiga, o papel de jornal que, na maioria das casas, acabavam por ser o higiénico.
As cascas da cebola, da batata e da cenoura, os talos mais duros da tronchuda e as folhas meladas do repolho, as pontas queimadas da alface, as espinhas do peixe, os ossos raspados do boi ou do porco conviviam no caixote do lixo da cozinha até ao entardecer. Moscas mais afoitas chamavam-lhe maná.
Antes de anoitecer de todo, cumpria-se o ritual de levar o caixote à porta. Enquanto os homens, arrotando no palito, davam alpista ao canário, as vizinhas encontravam-se como que na festa das mulheres que vão à fonte e punham no terreiro o que sobrara da tarde da roupa suja.
Latas, latões, caixas, caixotes, de cartão, de folha ou de madeira ficavam à porta do prédio, ao luar ou à intempérie, até que, de manhã, já vasculhados pelos cães e pelos gatos, a carroça do lixo os despejasse para um regresso condigno e disponível à sua imprescindível função. Recolhidos, as lixívias, sem rótulos, sem marcas, purificavam as entranhas. O jornal já lido revestia o interior. Os primeiros restos tombavam.
Era assim. O caixote não passava a noite em casa. O lixo dormia fora, antes do deitar cedo, pouco depois das galinhas, até o galo cantar.
Passaram quarenta anos.As galinhas emigraram. Os poucos galos que teimaram em ficar bocejam já o sol vai alto, perdida que foi a noite na 24 de Julho.
Os eléctricos que restam empatam o trânsito frenético e traquejante.
Os cavalos foram enjaulados em motores com burros ao volante.
As carvoarias fecharam sem deixar traço de fuligem. As tabernas de comida caseira e vinho do pipo são agora snacks e restaurantes de hamburgers e refrigerantes engarrafados e anunciados a peso de oiro. Dos galegos, nem a voz.
Já não há paus de roupa.
As sestas são insónias.
Os garotos não brincam com barquinhos improvisados porque os charcos secaram nestes tempos de seca.
Já não há vizinhas, nem canários, nem homens a arrotar no fim da tarde, com o palito entre os dentes. Escondem-se os palitos e os arrotos por não ficarem bem.
Mas o pior de tudo é que um caixote de lixo agora dorme em casa, não na cozinha mas no lugar mais nobre da sala e / ou do quarto, e não nos deixa dormir. Imperador e tirano, instalou-se. Catedral de plástico e vidro, recebe o culto nunca imaginado pelos santos populares, Santa Bárbara ou qualquer outro da corte celestial. Mente com quantos botões tem. Faz o apanágio das lixívias mas fede por todas as frinchas donde se esgueiram as moscas mais tsé-tsé e os vermes mais rastejantes. A troco de uma obiquidade ilusória de vários canais, imobiliza-nos o corpo amolecido no sofá e reveste-nos de adiposidades concêntricas como as camadas das bolinhas de chocolate que passam sem se dar conta pela goela, à velocidade das imagens na retina. Atira-nos com a sedução dos novos pregões e rouba-nos o poder de discriminação. Indiferente ao gosto e ao desgosto, ao bom gosto e ao mau gosto, atrofia-nos o pensamento e substitui as nossas próprias opiniões. Monopolizador, roubo-nos o precioso hábito de falar. Enfim, hipnotizou-nos de tal modo que ninguém pensa deixá-lo ao luar ou à intempérie até que o carro camarário leve para o aterro todo o lixo que contém.

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