Free JavaScripts provided
by The JavaScript Source

APARAS DE ESCRITA: SER OU NÃO SER PERFEITO

na Internet no iG em Notícias
Statistiche sito,contatore visite, counter web invisibile TRANSLATE THIS PAGE

sábado, janeiro 26, 2002

SER OU NÃO SER PERFEITO

Atalaia, 8 de Setembro de 1996.
Minha Cara Amiga:
Confesso que da última vez que vi uma telenovela ainda o inventor do tubo de raios catódicos não tinha nascido. Lembro-me de que, nessa altura, os telejornais falavam ainda, com algum desenvolvimento, do rescaldo do desastre do Titanic. Já não são do seu tempo essas televisões: ligavam-se com uma manivela e obrigavam a ter as janelas permanentemente abertas porque trabalhavam a vapor aquecido por carvão ou petróleo. Oiço dizer que a técnica do equipamento, da forma e do conteúdos dos programas evoluiu mas as minhas paixões assolapadas, por pessoas, animais, coisas, ideias, não me deixam disponibilidade física, mental ou temporal para olhar para um caixote falante. De resto, a última que comprei, na excitação curiosa da novidade e do requinte tecnológico, de que sou admirador confesso, jaz virgem a um canto da sala e serve de recreio e reduto de amor a um casal de canários que vive comigo e para quem nunca consegui arranjar uma gaiola condigna para a sua dimensão canora libertária.
Assim sendo, como deve compreender, não sou a pessoa indicada para aquilatar da justeza ou não da sua afirmação quanto ao gosto por telenovelas. E, mesmo que o fosse, tenho por princípio não julgar, apenas analisar para tentar compreender. No entanto, a minha mente moldada pela prática de anos de interrogações, quer por condições do meio em que nasci e cresci, quer pela prática assídua, diria, mesmo, constante, de observação psicológica, não descansou enquanto não procurou obter algumas respostas sobre o assunto. Talvez mais por si do que por mim, porque, afinal, se alguém tem um comportamento que considera defeito é porque não vive muito bem com ele, seja objectivamente, seja devido a pressões do grupo social em que se encontra inserido. Recorri aos bons ofícios de um amigo, perito na matéria, que já não via há muito tempo. Mas a amizade é assim mesmo, não tem tempo nem espaço, e a nossa caldeou-se na mistura de forças atractivas e repulsivas da acção conjunta. Trabalhámos os dois, antes da guerra, no mesmo projecto que visava o aproveitamento da tecnologia bélica à produção de flores. Projecto utópico, dirá. Pior do que isso, projecto condenado ao fracasso antecipado. Afinal, o sistema recuperou-o, sim, mas as flores assim nascidas só se dão em habitat de mármores e granitos lapidares acolhidos à sombra de ciprestes. Separámo-nos com a mágoa da festa que acaba em ambiente sórdido de bordel. Eu, mochila às costas, enveredei pela exploração de caminhos intransitáveis ou de difícil acesso, à procura dum tesouro de que ouvira falar em menino. Ele, mais pragmático e comunicativo, dedicou-se à pesquisa do efeito das palavras banais no bem-estar social. Fui encontrá-lo, mais grisalho e redondo, soterrado em pilhas de alfabetos para mim desconhecidos e símbolos estranhos como cabala. Não vou dizer-lhe do encontro, porque há momentos em que a intimidade não admite devassa, sob pena de ruir o edifício do sentir humano. Mas divulgo-lhe o trabalho que me remeteu algum tempo depois, com o entusiasmo que sempre lhe conheci. Em boa verdade, este trabalho pertence a si, só faz sentido por si, pois por si foi motivado. Devo dizer-lhe que, aqui ou acolá não me parece fazer sentido; mas a verdade é que eu sou um marginal quanto ao tema, enquanto que você, tenho a certeza, não terá dificuldade em descodificar-lhe os meandros, mesmo os mais sombrios e coleantes. Dada a dificuldade referida, optei por transcrever na íntegra o texto que ele me deu, mesmo quando me parece incompreensível. Apelo à sua paciência, esperando que o empenhamento desta dupla, em que sou um apagado interveniente, possa contribuir para o apaziguamento do seu como que remorso social encapotado.Ao seu dispor,
Amsterdam, 1-4-98.
Amigo Farinha:
Passaram quase dois anos sobre o pedido que me fizeste; e não fora o teu empenhamento em ajudar essa tua Amiga, como afirmaste e, mais do que isso, deixaste transparecer (és militante nesse género de prestabilidades arrebatadas desde que te conheço, com tudo o que de bom e de mau já acarretou para ti e para outros - desculpa a impertinência...) e eu teria desistido da tarefa. Pelo tempo que demorei na resposta podes imaginar as circunvoluções por onde o trabalho me conduziu. Mas sei que se a resposta fosse negativa, embora a nossa amizade não saísse beliscada, eu não dormiria uma noite sem sonhar com a tua imagem andrajosa de pedinte de compreensões e relações causais - e, pior do que isso, de corda ao pescoço aos pés da tua Amiga, como um impotente Moniz dos nossos tempos a tentar resgatar assim a honra penhorada. É claro que nunca aprenderás que só deves prometer o que puderes dar... porque contas sempre com as capacidades inesgotáveis de qualquer estrelinha simpática de um beco do Universo. Não me tomes por um moralista caduco. Talvez isto seja a raiva de gostar de ti como tu és, inveja de não conseguir ser assim também, sem remédio para ambos... Como de costume, considera-te desde já isento de agradecimentos, desta vez porque sei que vais estar ocupado a aligeirar a densidade do texto à tua Amiga e a burilar o que sintas ser desagradável para ela, e não quero desviar-te desse teu objectivo...
Escreve duas linhas quando descobrires a palavra disponibilidade no teu exíguo tempo pessoal...
Já acabaste o tal trabalho?... Do resto não pergunto por me parecer inoportuno nesta tua nova missão de humanitarismo...
Abraço-te com o afecto de sempre.
Teu,
APONTAMENTOS SOBRE O IMPACTO AMBIENTAL, EMOCIONAL E RELACIONAL DA TELENOVELA, COM ESPECIAL INCIDÊNCIA NA POPULAÇÃO URBANA CARACTERIZADA NO CAP.XXXIV, FLL 17 A 2789, DO "PRONTUÁRIO SISTEMÁTICO DOS RECURSOS E POTENCIALIDADES DA GEOGRAFIA HUMANA PORTUGUESA", de ELEUTÉRIO BENEVIDES SOCCA, Ed. "PORTUGAL SEMPRE ASSIM", BORBA, 1991.
CAPÍTULO I - (...)
CAPÍTULO II - (...)CAPÍTULO III - (...)
(...)
CAPÍTULO XXVII(...)
"Estudos linguísticos recentes indiciam que expressões captadas na telenovela como 'Puxa, meu amorrrr. Cadê o cafunê qui você próméteu pra mi, quirido?', 'Ôba! Chega p´rá lá... Esse aí é um cara légal, tá?' ou 'À turma deu o fora e caiu na réal' exercem uma influência benéfica no desenvolvimento da língua (embora não necessariamente no enriquecimento da Língua e, muito menos, da portuguesa). Os mesmos estudos referem que tais expressões tendem a fazer descer significativamente os padrões da qualidade do discurso, com a vantagem de tornar esse discurso mais acessível à maioria da população analfabeta, em particular se acompanhado dos gestos e dos guinchos exuberantes e carregados de significado da cultura latino-americana. É, pois, um processo de reconstrução regressiva de tendência infra-niveladora e colorido primário.
(...)
CAPÍTULO LXIX(...)
Uma experiência levada a efeito pela equipa do Prof. Li Xo Thu, convidado da Univ. de Axim Tamal, Botão, sobre uma amostra significativa constituída por 629 mulheres portuguesas entre os 25 e os 35 anos, licenciadas em ciências de raiz alquímica, com funções de liderança técnica, verificou as seguintes ocorrências:
(Grupo experimental, submetido durante três semanas à acção da telenovela brasileira 'Só Saúde')
- transformação dos capilares de irrigação sanguínea cerebral em corpos com a forma e a consistência de tubos de ensaio, retortas e pipetas, revestidas interiormente por algodão em rama embebido em clorofórmio;
- atrofia dos músculos pélvicos com queda precoce das pilosidades adjacentes;
- perda gradual da capacidade discriminativa em relação às cores na gama dos verdes, com especial incidência e agravamento nas mulheres que já tinham história clínica nesse sentido;
- estado confusional que as leva a um abrandamento na auto-disciplina quanto a obrigações a cumprir (atrasos a encontros, jantares, etc.);
- tendência para fazer amizades duvidosas em viagens, nomeadamente cruzeiros, com especial atracção por proprietários (as) de cães e por "Tias";
- propensão mórbida para utilizar cozinhas alheias na confecção de pratos italianos.
(...)
CAPÍTULO LXXXIII(...)
A ocupação do horário nobre televisivo com telenovelas tem contribuído para o apaziguamento de climas tensos em grande número de lares portugueses. Na verdade, durante o jantar e parte do serão impera um silêncio, tácito ou imposto, em todos os membros do agregado familiar, diluente progressivo da oportunidade de discussão dos assuntos importantes pendentes que, deste modo, assim continuam e se perpetuam.(...)
CAPÍTULO CCCXCVIII
(...)
A utilização maciça de telenovelas tem vindo a representar uma contenção não desprezível de saída de divisas. Os cenários, a caracterização dos personagens, o modo de vida, o tipo de casas, o poder de compra estão espelhados com rigor etnográfico tal que escusa qualquer deslocação para conhecer in loco aquele mundo. Acresce a isto o valor como instrumento de gestão política, ao permitir a desmontagem e a denúncia da falsidade daqueles que, movidos por razões subterrâneas menos confessáveis, põem a circular no exterior notícias tendenciosas sobre favelas, assassinatos públicos e diurnos a cadências electrizantes, nichos de fome e de doença, inflação, qualidade de vida.(...)
CONCLUSÃO
(...)
(...) de tal forma que consideramos a telenovela não só um instrumento de conformação social, com todas as vantagens de pacificação que tal acrescenta à governação, mas também um dos mais enriquecedores veículos culturais em múltiplas vertentes e, por isso, aconselhamos vivamente os governos a investir neste tipo de entretenimento televisivo.
Em concomitância com a construção de grelhas que privilegiem um espaço cada vez mais dilatado e de maior faixa de audiência reservados à telenovela, importa promover uma campanha de esclarecimento e apelo da opinião pública de modo a que a telenovela não seja considerada perda de tempo, futilidade, embrutecimento mas, ao contrário, dignificação, relaxe saudável, cultura, higiene mental, conhecimento e solidariedade entre os Povos de que ninguém se deve envergonhar. Em suma, que o simples cidadão seja cada vez mais simples e ostente orgulhosamente ao peito, em destaque, o emblema da telenovela."

[ View Guestbook ] [ Sign Guestbook ]
Get a FREE guestbook here!
Votez pour ce site au Weborama eXTReMe Tracker Estou no Blog.com.pt Bravenet.com Eu estou no Blog List

trueFresco.Org - destination Fresco Painting Society

trueFresco.Org- ArtWorld Link Partner Directory



O Ponto de Encontro dos Blogueiros do Brasil --> Licença Creative Commons
Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons para José Luiz Farinha.