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APARAS DE ESCRITA: TESTES

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sexta-feira, outubro 25, 2002

TESTES

Tenho o futuro à minha frente. Não estou a falar de mim mas dos rapazes e raparigas que vieram de várias zonas do país, todo o país, à procura de melhor sabe-se lá o quê, e que tentam provar que são os mais indicados para o desempenho de determinadas tarefas. Para alguns deles, os testes psicotécnicos com que jogam agora à cabra cega desempenham o papel de melhores aliados ou piores inimigos, conforme o que sintam no momento em que enchem a folha de respostas e, mais tarde, os resultados que venham a obter; para outros, novos ou velhos privilegiados, os testes são um ritual necessário para que a "recomendação" do pai, do padrinho ou do amigo se possa esbater no seu curriculum interior, sem resíduos de mancha de apropriação do mérito alheio, de competição desleal e, muitas vezes, de indício de incompetência e de incapacidade irremediáveis.
A "recomendação", com todos os outros crismas com que tem sido ungida, como "empenho", "favor", "pedido" ou, mais prosaica e significativamente "cunha", é um monumento nacional, o que explica a sua intocabilidade antes, durante e depois da referência histórica 25 de Abril. Um monumento nacional que configura a nossa preguiça inventiva para moldar a escassez de certos recursos materiais, o comodismo de mão estendida aos créditos a fundo perdido, o conformismo às dependências externas, o estilo mercantilista das relações interpessoais, o espírito corporativista das famílias e das amizades. Nunca houve a preocupação de procurar um remédio que pusesse fim à praga, bem pelo contrário. Na monarquia e no partido único, há que salvaguardar os princípios, leia-se privilégios, em boas mãos - a "cunha" permite perpetuar os modelos de pensamento nas organizações, públicas e privadas, e as regalias sociais no seio das famílias; na democracia, a partilha de poder obriga à prestação de favores e à respectiva cobrança de facturas, de parte a parte. E é assim que a sobrevivência da "recomendação" parece assegurada. O silêncio à sua volta reflecte o interesse em que não se fale dela, para a manter operante até ao limite da discrição permitida pelo grau de descaramento dos intervenientes; ruído que não chega a ser barulho consequente e que se percebe, por vezes, entre dois bocejos traduz alguma traiçãozinha palaciana de promessa não cumprida em benefício de um concorrente, ou a colisão de "cunhas" de intensidade diferente que faz explodir de raiva o perdedor - perder, nem a feijões e, muito menos, às cunhas - a quem resta, como resquício da dignidade que conhece, a denúncia despeitada do gesto que, a reverter em seu favor, o tornaria num assumido e militante lambe botas (se acaso o não é já).
Assim vão vivendo cunhistas e cunhados, que o mesmo é dizer padrinhos e afilhados, na visão tacanha de que, afinal, a coisa funciona... A coisa, a "cunha", funcionar funciona quando há chão para isso. Mas deixando de lado os casos anormais, quase patológicos, de integridade, por quanto tempo funciona? Funciona no imediato, que é o que interessa às comezinhas intenções cujas estratégias assentam no "agora já está, depois logo se vê". E, nesta perspectiva, a "coisa" começa a minar a sua própria segurança, em particular quando é manifesta a incompetência do indivíduo. Enquanto se mantiver a influência protectora do agente directo ou do agente intermediário da "cunha", o lugar, o privilégio, seja o que for, estará garantido. Mas, quando um destes elementos falhar (ou os dois, o que se torna catastrófico), várias coisas podem ocorrer, em separado ou em simultâneo. Assim, se o protegido se mantém no lugar inicial onde não conseguiu deixar de afirmar a sua incompetência e se, para além disso, acumulou alguns rancores decorrentes do relacionamento com os outros, vai estar sujeito a toda a espécie de acções de retaliação, quer por parte dos colegas, quer por parte das chefias (para quem, geralmente, um "pára-quedista" é uma ameaça ao lugar ou um entrave para um outro seu protegido); as avaliações de desempenho passarão do máximo para o mínimo; os atrasos, dantes encarados com a bonomia de um "Ó Sr. Fulano, por quem é..." (por quem é o seu padrinho), passam agora a um seco "Veja lá se começa a levantar-se mais cedo!"; dispensado de um departamento, não é aceite por outros ou, se imposto, resta-lhe executar as tarefas que os colegas não querem; vá para onde for, estará sempre sujeito aos cochichos, piadas e sorrisinhos, em que o chefe alinha, com o rótulo que nunca mais o abandonará - "este é o cunha de tal"; no pressuposto de que a sua fonte de influências secou e se não tiver possibilidade de se despedir e não for, entretanto, despedido, percorrerá vários serviços, sempre em funções desagradáveis, até cristalizar numa carreira de insucesso e de frustrações que é uma das causas do mau viver em casa. Para os que conseguiram guindar-se, ou ser projectados, para lugares de confortável segurança, a quebra da sustentação inicial não apresenta um risco tão elevado, principalmente se souberem manter um perfil discreto, sem ostentações; no entanto, não estão isentos de alguma perseguição ("mudam-se os tempos..." ou "não perdes pela demora") nem das intrigas e dos comentários menos abonatórios de bastidores. Quanto aos que são (e já eram) competentes, a "cunha" serviu para garantir o acesso a determinada posição sem ter de passar pelo desconfortável esforço competitivo entre um leque alargado de candidatos, porventura com elevadas capacidades. Os custos para as Organizações não fazem parte da contabilidade do processo, o que não quer dizer que não existam - e de forma pesada: sustentar um elemento cujo trabalho tem de ser feito ou corrigido por outro, ou outros, sai caro; gerir guerrilhas internas, por mais santas ou diabólicas que sejam, sai caro; ter indefinidamente em casa, com baixa médica, um elemento que descompensou por inadaptação, sai caro; recorrer a sucessivas acções de formação para corrigir o incorrigível, sai caro. São estes alguns dos custos que as empresas têm de suportar quando não podem, não querem ou não sabem ser refractárias às "cunhas".
É claro que esses encargos, directa ou indirectamente, acabam por nos cair em cima, em cima de nós, cidadãos, contribuintes, preocupados ou não em ter os impostos em dia. Como no universo, tudo o que se passa na mais pequena e longínqua empresa portuguesa vai afectar, mesmo que, aparentemente, não se dê por isso, todos e cada um dos portugueses.
Mas o português aprendeu a respeitar, a bem ou a mal, as instituições, mesmo que muito mal alguma delas lhe faça. É quase uma relação masoquista. Como não respeitar, então, ou, pelo menos, acatar a "cunha", sendo ela uma instituição excelentíssima?
Na pessoa destes rapazes e raparigas que aqui estão a submeter-se a testes, tenho o futuro à minha frente. E 75% desse futuro é "recomendado"...

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