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APARAS DE ESCRITA: JOGO DE PALAVRAS

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segunda-feira, janeiro 21, 2002

JOGO DE PALAVRAS


Dizer que a língua portuguesa é muito traiçoeira pode ser apelidado, simultaneamente, de lugar comum e de acabado disparate. A traição, se existe, não será imputável à língua mas ao utente que, recorrendo de forma habilidosa à riqueza do léxico e à versatilidade das conotações, distorce, a par e passo, se quiser, o significado da expressão, para deleite de alguns e desespero de outros menos avisados. Este jogo, sob uma capa de desregramento e diluição de limites, possui, no entanto, normas próprias, como jogo que é, e de que destaco, à cabeça, a coerência do discurso e o efeito do imprevisto. Por outro lado, ainda como jogo, o sentido lúdico está sempre presente sob a forma de humor, seja ele inócuo ou carregado de crítica (e aqui intervém a presença ou a ausência de sentido de humor do outro).
Convido-vos a um passeio, em tarde de calor pesado, por uma mata fresca de exemplos.
Segunda-feira de manhã, contrariado pelo fim do fim-de-semana, encontro já sentado ao terminal a colaboradora mais jovem e mais esplendorosamente torneada do serviço. Dada a diferença de idades, permito-me saudá-la com um "está boa, meu bem?". Sorri-me de tal forma que não sei o ano em que nasci. Mas se lhe dissesse "está bem, minha boa?", o mais provável é que disparasse para o gabinete do chefe para me acusar de assédio. Bastaria uma reordenação das palavras, das mesmíssimas palavras na frase para que a semana começasse mal. Se o meu colega diz que "tem ar de boneca", refere-se à dactilógrafa de pele leitosa, bochechinhas rosadas, longas pestanas por cima dos olhos claros que se move com a cautela adequada à sua fragilidade geral. Mas se a observação for "tem boneca de ar", sei que fala do director cinquentão, solteirão, amante de uma insuflável comprada num sex shop de Hamburgo. Espreitar pelo "rabo do olho" não é crime, nem na acção, nem na linguagem coloquial. Mas se, em público, alguém falar no "olho do rabo", é mais que certo que a sua época de festas acabou, pelo menos enquanto esta expressão não estiver in. "Feito de pau" pode ser um valiosíssimo Santo António dum século passado, mais valiosíssimo, ainda, se for de data anterior ao seu nascimento, numa exposição da capital da cultura. A alternativa, que deixo ao vosso cuidado, não tem a ver com o santo milagreiro, a não ser, talvez, indirectamente, com as bilhas de que fala a tradição popular. "O vizinho da cadela" é aquele major reformado do 5º C que, disciplinadamente, às seis em ponto, leva a bichinha à rua para o alívio matinal. Mas já "a cadela do vizinho" pretende tranquilizar a minha companheira, a meio da noite, do chinfrim provocado pela tremenda bebedeira do tipo do andar de cima. Amélia é uma menina católica, apostólica, romana que tem um confessor habitual, conhecido na família como "o padre da Amélia". Ao contrário, "a Amélia do padre" atira-nos para o inferno do index de que se ri o nosso querido Eça. Se tem um cavalo lustroso, nervoso, garboso, é natural que o seu amigo pergunte quem é "o veterinário do cavalo". Contudo, se, apesar da avença, o animal deixou de dar ao casco, dirá, aposto, que a culpa foi "do cavalo do veterinário". "A rainha do coiro" é, verosimilmente, uma loja perto da fronteira sul onde podemos encontrar toda a espécie de cabedais transportados de Marrocos. Quanto ao "coiro da rainha", para não ferirmos susceptibilidades estrangeiras, falemos da nossa, uma tal de Telles que vendeu a alma ao diabo, o corpo ao Andeiro e venderia Portugal aos Espanhóis se não fosse o arraial armado pelos Portugueses de boa têmpera daquele tempo. "Tomates de produtor", sem pesticidas, sem corantes nem conservantes, dão outro gosto à salada. "Produtor de tomates" é uma figura que dá outro sabor à contestação da política agrícola. "As coxas da campeã" dos não sei quantos metros barreiras, o seu modelado, a sua elasticidade, os seus contornos, o sombreado que cria relevo, apesar de tudo, feminino, o desejo de as tocar, de preferência com as minhas, mantêm-me acordado frente à televisão. "A campeã das coxas" liberta-me bocejos na vitória duma qualquer obscura equipa da 5ª divisão sem honra. "Tem vinho mau", o Zé da Adega; um martelão em que entra tudo menos uva. E, ainda por cima, "tem mau vinho", a avaliar pelo olho negro da Felícia (a que lhe pariu os sete filhos) no dia a seguir ao clube da terra ter perdido. "A sueca do grupo" é a nórdica loiraça que sobressai do grupo internacional à procura de cacos e fósseis no monte. "O grupo da sueca" é, por seu lado, um conjunto de fósseis a escaqueirar o que resta da política à portuguesa. Num 10 de Junho, a acompanhar uma medalha por feitos nunca vistos, ficaria bem aplaudir a Senhora de Fulano e Beltrano como "a filha desta mãe pátria", ainda que "a pátria desta filha da mãe" nos conduza à Inglaterra dos tempos da dama de ferro, e a exclamação "a filha da mãe desta pátria" mobilize os nacionalistas numa desenfreada caça às bruxas e às medalhas. "A prima do outro" referencia um grau de parentesco numa conversa informal entre famílias. "O outro da prima" revela que a priminha tem mais um, seja lá o que for. "O corno de África", como área geográfica de conflito, tem sido objecto de grandes reportagens. Quanto à "África do corno", bom, há coisas que são de todos os continentes e deixemos o assunto por aqui. "O carro do lixo" aparece, felizmente, todos os dias na minha rua. "O lixo do carro" também, infelizmente, e lava-me porco é a maneira cordial que os vizinhos têm de me alertar para o facto. "A troca de ideias" é indispensável numa sociedade democrática. "A ideia das trocas" é aflorada por alguns casais mais pornocráticos. Se é verdade que "o polícia do cão" impõe algum respeito, "o cão do polícia" traduz alguma animosidade para com a lei à cacetada. É pela "menina dos olhos" que nos extasiamos nos "olhos da menina". "O marido da viúva" vive agora à grande e nem o cheiro do suor do defunto impede os suspiros e os gritinhos de prazer. Da "viúva do marido" há algumas dores daquilo de que se falou atrás e está no norte de África como em toda a parte. "O regresso do filho da mãe" tanto pode ser o título dum Vilhena dos anos 60 como de uma ode a qualquer D. Sebastião. "O filho da mãe do regresso" contempla, invariavelmente, o fim das férias.
Dado que foi o passeio por esta terra fértil da língua portuguesa, vamos beber uma sede de água limpa, que aquela aperta, esta escasseia e a língua está viva.

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