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APARAS DE ESCRITA: BOA SORTE, PADRE X

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segunda-feira, maio 16, 2005

BOA SORTE, PADRE X

Quando a minha amiga e vizinha me convidou para o casamento, dei-me conta de que nem sequer sabia onde se localizava a igreja do meu bairro.
No dia do evento, verifiquei que, afinal, ficava bem perto de minha casa. A condição de paroquiano ausente nada tinha a ver, pois, com distâncias métricas.
Enquanto a cerimónia não começava, há actos sociais que parece nunca mais começarem, entretive-me a vasculhar com os olhos o interior da igreja.
Sem os alardes barrocos característicos da maioria das igrejas católicas do Recife, esta, mais recente, é sóbria, ainda que ampla, e nela não há presunções de estilo identificável. Limpa, bem conservada nos seus 30 anos, com um toque alegre e cantante de flores que, em profusão, enfeitam o altar-mor. Uma igreja, mais uma igreja que adicionei ao meu catálogo da memória.
A noiva finalmente chegou, dentro dum atraso perfeitamente tolerável, face à ousadia de hora e meia, duas horas de espera, tão frequente nos casamentos locais.
O padre aguardava já no altar, singelamente paramentado com uma alva crua, sobre a qual uma estola, levemente bordada, descia quase até aos pés.
Preparei-me para uma hora de sacrifício, há actos sociais que parece nunca mais acabarem, mas enfim, casamento oblige...
A cerimónia começou. E continuou.
Não sei já em que parte do ritual, apercebi-me de que aquele padre me despertava a atenção com um discurso limpo de preconceitos, arejado, despretensioso.
Era um homem novo, trinta e poucos anos, bem parecido, com o ar sereno de quem, aparentemente não tendo nada, possui tudo na vida.
Quando a homilia acabou, registei que Deus quase nunca fora mencionado, e, no entanto, não havia uma só palavra do sermão em que Deus não estivesse presente - um Deus muito cúmplice com a felicidade do homem.
A partir daquele dia passei a frequentar aquela igreja, ao domingo, não por convicção religiosa, nem por retomada de hábitos de infância e juventude; a minha religiosidade tinha seguido um rumo diferente, sem pertenças a qualquer fé organizada. Mas as palavras que eu ouvia daquele homem faziam-me bem à alma, faziam-me sentir mais humanamente divino enquanto, também, mais divinamente humano.
Comecei a cumprimentá-lo no fim da missa, na sacristia, como faziam muitos dos seus paroquianos. Aos poucos tive oportunidade de me aproximar dele. Aos poucos, as meras palavras de saudação tornaram-se conversa mais alargada e profunda. Falava-me, então, da sua igreja; não das paredes que serviam de limite ao espaço do culto, mas das obras que a elas estavam ligadas. Como pároco, herdara ali, quatro anos antes, uma comunidade morta, desmotivada, desmobilizada, de igreja vazia. Hoje, com trinta grupos a funcionar, entre apostolado e acção social, orgulhava-se das suas quatro missas semanais de "casa cheia"; cheia e participativa. Depois de ter conseguido assegurar para os mais desfavorecidos da comunidade um serviço regular e gratuito de assistência jurídica e outro de fisioterapia, igualmente gracioso, ultimava agora a montagem de um consultório médico com várias especialidades, ideia que lhe surgira quando pôs a funcionar um esquema de distribuição de medicamentos a custo zero. Tudo isto me era mostrado sem ostentações, naturalmente, como se essa fosse uma missão a cumprir e da qual tivesse de prestar contas aos seus paroquianos. Quando lhe gabava a obra, o padre X, tímido apesar de homenzarrão, dizia em surdina que ainda havia muito para fazer.
Passaram alguns meses. Mudei de residência para um bairro distante da paróquia do padre X.
Numa noite de quarta-feira, no horário que ele estabelecera para receber os paroquianos, fui até à igreja para me despedir dele.
Encontrei um ar de circunspecção entre os presentes. Perguntei pelo padre. Com ar abatido, responderam-me que o padre ia deixar a paróquia.
Quis saber porquê, indaguei, tentei aprofundar. Um pouco a medo, medo logo suplantado pelo desespero, contaram-me a história.O padre X não era um padre diocesano. Quer dizer, não pertencia aos quadros da diocese. A sua formação fizera-se dentro de uma congregação de religiosos com sede em Itália, mas de ramificações em Moçambique e no Brasil, países onde a sua missão faria sentido, pelo menos em teoria. No Recife, a congregação de uma dúzia de religiosos ocupava um convento perto da igreja que o padre X administrava. Em convénio antigo entre a diocese e a congregação, a esta fora cedida pelo bispo a igreja para administração e usufruto, por falta de padres diocesanos para o ofício. Mas toda a vida, religiosa e laica, que a paróquia respirava se devia à acção do padre X. Ao contrário, os religiosos seus irmãos, embora jovens como ele, em nada contribuíam, fosse para o culto, fosse para qualquer actividade social da comunidade. A sua preocupação prendia-se às coisas do mundo que contrariavam os votos de pobreza que tinham feito.
E a questão estava aí. O superior do padre X, como represália por ele não ceder ao convento a totalidade do apuramento das dádivas dos paroquianos, dádivas que o padre X utilizava no serviço dos carenciados, tinha exarado a sua transferência para daí a três semanas, despejado numa paróquia longínqua. Substituído por um padre da confiança do superior, a obra do padre X tendia a ruir em pouco tempo.
A comunidade estava perplexa, revoltada, chorosa e sem saber o que fazer.
Eu recebi a notícia com a perplexidade ingénua de quem não deveria ser tão ingénuo nestas politiquices da Igreja, e com a revolta que sempre cresce em mim quando se me depara uma pulhice, venha ela donde vier.
Ali mesmo me envolvi com os mais activos na busca de uma solução. Foi assim que me vi a redigir uma carta aberta à comunidade, denunciando a canalhice e mobilizando o povo para se unir em torno do seu pároco, tentando impedir a sua saída. Foi assim que me vi, também, a fazer parte de uma pequena comissão que se deslocou à diocese, onde o bispo ouviu o relato dorido, os protestos ferozes e os pedidos angustiados de justiça.
A acção do bispo, e do bispo auxiliar, ficou-se pela promessa de que iria estudar o assunto, com a recomendação de que não se perdesse a fé.
O padre X foi transferido.
Na última semana a igreja transbordava, tão concorrida de gente, dentro e fora, como na festa da padroeira, que enchia as ruas em redor. O último dia, o do adeus, foi patético. Discursos, abraços, lágrimas. O padre X partiu. Eu comovi-me também no último abraço que lhe dei.
Eram decorridos dois meses, quando numa noite, pouco depois da eleição do novo papa, recebi um telefonema atormentado de um dos paroquianos que comigo encabeçara o movimento de apoio ao padre X. Perguntou-me se sabia dele. Não sabia, de todo. Imaginava-o na sua nova paróquia, a iniciar obra semelhante à que fundara na anterior. Era um homem de obra, de missão.
- "Largou a batina" - foi a exclamação, desferida como uma punhalada à minha pessoa - "Está a viver com uma mulher. Agora o povo anda a cobrar-me pela defesa que fiz dele. Preciso da sua ajuda. Apareça. Conto-lhe os pormenores".
Não apareci. Os pormenores não me interessavam. Quanto à eventual ajuda que me pediam, ajudar em quê? Como? Para quê?
Defendo que o padre X não traiu: foi traído. Quando, explorando o seu deslumbramento místico de adolescente, lhe prometeram a paz interior que ele procurava, não lhe disseram que essa paz só existe em espíritos sem vida. Quando o induziram aos votos de obediência, pobreza e castidade, não ressalvaram que a obediência perante a injustiça é cobardia, a pobreza consentida para o enriquecimento ilegítimo de terceiros é alienação e a castidade sem sentido justificável é arbitrariedade contra-natura.
O padre X descobriu isto a tempo, a tempo de não se deixar levar pela acomodação, a tempo de não se deixar transformar num morto-vivo, a tempo de não se tornar num adversário da sua consciência, pela mentira imposta por ele a si e aos outros.
Livre dessas cargas, o padre X, porque se quis desfazer delas e conseguiu, pode agora ser mais feliz, isto é, criou as condições para fazer os outros mais felizes, tão felizes quanto fazia antes, quando ainda acreditava na pureza da Igreja-instituição.
Ao x-padre X, desejo na sua nova missão as maiores felicidades, ou, como se diz por aqui, boa sorte, que a merece.

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